domingo, 24 de maio de 2009

Clarice Lispector E Tom Jobim entrevistam-se cosmicamente. MÚSICA , MORTE , VIVAS


Trecho retirado da biografia Antônio Carlos Jobim, escrita por Sérgio Cabral.

Ao abrir a entrevista, Clarice lembrou que já conhecia Tom há muito tempo: fora seu padrinho no lançamento do livro Maçã no escuro, no primeiro Festival de Escritores. “Ele segurava o livro e perguntava: ‘Quem compra? Quem quer comprar?’. Agora, ele chega bonito, simpático, com um ar puro maigré lui, com os cabelos um pouco caídos na testa. Um uísque na mesa e começamos a entrevista”. Sendo Clarice Lispector uma romancista especializada nas incursões ao interior da alma, abriu a entrevista querendo saber as relações de Tom Jobim com a morte. “A morte não existe, Clarice. Tive uma [uma com h: huma] experiência que me revelou isto. Assim como não existe o eu nem o euzinho nem o euzão. Fora essa experiência que não vou contar, temo a morte 24 horas por dia. A morte do eu, te juro, Clarice, porque eu vi.”A escritora lembrou a frase de Bernard Berensen que ilustrou um dos seus livros: “Uma vida completa talvez não seja aquela que termine em tal identificação com o não-eu que não resta um eu para morrer.” Comentário de Tom: “Isso é muito bonito, é o despojamento. Caí numa armadilha porque, sem o eu, eu me neguei. Se nós negamos qualquer passagem de um eu para o outro, o que significa reencarnação, então o estamos negando.” Clarice: “Não estou entendendo nada do que estamos falando, mas faz sentido. O que é que você acha do fato da liderança do mundo estar hoje nas mãos dos estudantes?” (1968 foi o ano da revolta estudantil de Paris e de inúmeras manifestações de estudantes no Brasil, inclusive “a marcha dos 100 mil”.). Tom: “Acho que não podia ser de outra forma. E que venham os estudantes. Vladimir [Palmeira, líder estudantil] sabe disso. ”Quando Clarice Lispector propôs conversarem sobre o confronto arte versus sociedade de consumo, Tom respondeu: “Viva Oscar Niemeyer! Viva Vila-Lobos! Viva Clarice Lispector! Viva Antônio Carlos Jobim! A nossa, Clarice, é a arte da denúncia. Tenho sinfonias e músicas de câmera que não vêm à tona. A criação musical em mim é compulsória. Os anseios de liberdade nela se manifestam.” Clarice: “Liberdade externa ou interna?” Tom: “ A liberdade total. Se como homem fui um pequeno-burguês adaptado, como artista me vinguei nas amplidões do amor. Você desculpe, eu não quero mais uísque por causa da minha voracidade. Tenho é que beber cerveja porque ela locupleta os grandes vazios da alma. Ou pelo menos impede a embriaguez súbita. Gosto de beber só de vez em quando. Gosto de tomar cerveja, mas de estar bêbado não gosto.” Clarice: “Como é que você sente que vai nascer uma canção?” Tom: “As dores do parto são terríveis. Bater com a cabeça na parede, angústia, o desnecessário do necessário são os sintomas de uma nova música nascendo. Gosto mais de uma música quanto menos mexo nela. Qualquer resquício de savoir-faire me apavora. Gosto de colaborar com quem amo: Vinícius, Chico Buarque, João Gilberto, Newton Mendonça e Dolores Duran.”

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